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Reprogramação genética para produção de anticorpos mostra-se promissora no enfrentamento da Doença de Alzheimer

Reprogramação genética para produção de anticorpos mostra-se promissora no enfrentamento da Doença de Alzheimer

Pesquisa com participação do IDOR utiliza modificação genética de neurônios para produção de anticorpos capazes de reduzir déficit cognitivo em camundongos com demência


Segundo a Organização Mundial de Saúde, a Doença de Alzheimer (DA) é o tipo mais comum de demência, sendo diagnosticada em 70 a 80% dos casos. No Brasil, dados do Ministério da Saúde indicam cerca de 1,2 milhões de pessoas têm a condição, e que 100 mil novos casos são diagnosticados todos os anos. Apesar dos números espantosos e de mais de um século desde a descoberta da doença, ela ainda não é completamente compreendida e não há terapias eficazes para seu controle ou cura. Porém, um recente
estudo pode estar pavimentando um novo caminho no tratamento da doença, renovando as esperanças de milhões de pacientes e familiares que convivem com o problema mundo afora.

Publicada recentemente no periódico científico internacional, Molecular Therapy, a pesquisa utilizou camundongos para avaliar a ação de um anticorpo desenvolvido em laboratório, o NUsc1, na inibição de aglomerados de moléculas que prejudicam as conexões cerebrais na doença de Alzheimer. O estudo teve colaboração do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade de São Paulo (USP) – Ribeirão Preto, além de diversas instituições de pesquisa nos Estados Unidos, Argentina, Canadá e França. Mas, para entendermos a relevância dessa pesquisa, é preciso antes adentrar um pouco no que a literatura científica acredita ser a causa da doença de Alzheimer.  

A beta-amiloide é uma proteína responsável por processos importantes no funcionamento do cérebro quando está presente como moléculas isoladas (monômeros) e em pequenas quantidades. Em alguns casos, quando sua produção é excessiva ou sua remoção do ambiente cerebral não é devidamente executada, essas moléculas começam a aglomerar, formando oligômeros, com 2 a 12 monômeros, e até fibras ou placas de beta-amiloide, que possuem milhares dessas proteínas. A quantidade de moléculas de beta-amiloide no líquor (fluido presente no cérebro e na medula espinhal) é um dos principais marcadores precoces da DA, e aglomerações dessa proteína criam barreiras que interferem nas conexões neurais, as sinapses. 

Os poucos tratamentos recentes endereçados à doença são de imunoterapia com anticorpos monoclonais, que são aplicados via intravenosa para agir em um alvo-específico. No caso da DA, o alvo desses medicamentos são as placas de beta-amiloide (confira o Bloco Saiba Mais), contudo, nenhum deles possui efeito de retardar de forma importante o avanço da doença e ainda estão associados a muitos efeitos adversos, como a inflamação do cérebro, que acaba sendo prejudicial para a doença. 

“Algumas pessoas acreditam que as placas também causam problema de memória, mas essa hipótese já não é muito válida, pois sabemos que existem pessoas que têm muitas placas no cérebro e possuem boa memória, e pessoas que têm problemas de memória importantes e apresentam poucas placas em seus cérebros, de forma que a correlação entre perda de memória e placas não é clara. A questão das sinapses relacionadas aos oligômeros é mais relevante”, explica o Dr. Sérgio Ferreira, coordenador do estudo, professor dos Institutos de Biofísica e de Bioquímica Médica da UFRJ e pesquisador associado ao IDOR. 

Saiba mais: Imunoterapias recentes para o Alzheimer

Aducanumabe – Em junho de 2021, a FDA (órgão equivalente à Anvisa, nos Estados Unidos) aprovou o primeiro medicamento para Alzheimer em 20 anos, da empresa Biogen. O aducanumabe é um anticorpo monoclonal destinado a reduzir as placas de beta-amiloide que se acumulam em pessoas com a doença. Sua aprovação foi controversa e questionada pela comunidade científica, pois o medicamento oferecia riscos consideráveis e a sua capacidade de diminuir as placas não se mostrou relevante para a doença.
Lecanemabe – Apresentado em dezembro de 2022 em um congresso internacional sobre Alzheimer, o medicamento, também da Biogen em parceria com a Eisai, apresentou em seus primeiros resultados a capacidade de agir nas placas de proteína beta-amiloide e reduzir o declínio cognitivo e da memória em pacientes com sintomas leves. Apesar de ser uma descoberta importante, essa redução parece ainda muito pequena para ser clinicamente relevante no desenvolvimento da doença, e o medicamento também pode causar neuroinflamação.

O Dr. Sérgio lidera há mais de 20 anos um grupo de pesquisas voltado para a investigação do papel dos oligômeros de beta-amiloide na DA. “Desde que foram descritos como possíveis toxinas no Alzheimer, há 24 anos, mais de 5 mil artigos científicos mostram os possíveis impactos negativos desses oligômeros no funcionamento das sinapses e do cérebro, inclusive muitos estudos do nosso grupo. Desde o começo dos anos 2000 nós estudamos esse tema”, informa. Ele explica que as placas de beta-amiloide podem não ser tão importantes para o Alzheimer porque elas ficam acumuladas em áreas específicas, enquanto os oligômeros são solúveis, circulam pelo líquor e, por serem menores, se ligam aos neurônios, prejudicando as sinapses em várias partes do cérebro, o que causaria maior perda de memória e confusão mental. 

“Acredita-se hoje que as placas são como uma espécie de depósito de lixo, um lugar em que o cérebro vai amontoando aquela proteína tóxica para minimizar o problema. Na borda desse ‘lixão’ você vai ter problemas, mas não longe dele. Já os oligômeros seriam como os sacos de lixo pequenos, são solúveis e se dissolvem no líquor, e ficam passeando pelo cérebro atacando as sinapses. Por exemplo, é como se as placas fossem um aterro sanitário e os oligômeros o lixo espalhado nas ruas, e esses últimos, sim, vão tapar bueiros e causar inundações”, facilita o cientista. 

Interessados em uma forma de agir isoladamente nesses oligômeros, os autores do artigo utilizaram um mini-anticorpo artificial, que foi desenvolvido em 2017 a partir da colaboração do grupo em outro estudo. “Isso se iniciou anos atrás, com o Adriano Sebollela, em uma colaboração da Northwestern University, nos EUA, com a USP Ribeirão Preto e a UFRJ. Ele identificou anticorpos naturais que se ligam preferencialmente aos oligômeros. A partir daí, ele sequenciou o DNA que dá origem ao anticorpo e nós pegamos o pedacinho da sequência genética que era responsável pelo reconhecimento desse oligômero, e a utilizamos para criar o anticorpo artificial, o NUsc1”, relembra.

Mas a forma de aplicar esses anticorpos não favorecia seu uso clínico, pois seria necessário realizar injeções periódicas no líquor dos pacientes. “Foi aí que pensamos, ‘E se a gente conseguir ensinar os nossos neurônios a produzir essa molécula?’. Então, colocamos a sequência genética de DNA do NUsc1 em um vetor viral atenuado capaz de infectar neurônios, mas que, em vez de causar doença, faz com que o neurônio passe a produzir aquela molécula. É uma terapia gênica, estamos modificando a genética da célula para que ela produza algo que não produzia antes. No caso, estamos ensinando o neurônio a produzir um anticorpo artificial e pequeno, incapaz de causar inflamação neural”. 

O estudo foi realizado em camundongos com DA. O vetor viral foi injetado apenas uma vez e foi observado que os neurônios dos roedores passaram a produzir o NUsc1. Os resultados também foram os esperados: a proliferação dos anticorpos reduziu o comprometimento da memória induzido pelos oligômeros de beta-amiloide e, notavelmente, reverteu os déficits de memória nos camundongos, um resultado de potencial relevância para a comunidade científica e para as pessoas afetadas pela DA. 

Ao ser perguntado pelo futuro do estudo, o Dr. Sérgio se mostra esperançoso, contudo, informa que ainda existem muitas pesquisas e testes a serem feitos. “Um próximo passo importante seria conseguir parcerias na indústria biofarmacêutica para desenvolver a ferramenta que criamos e aplicar em um futuro ensaio clínico. Iniciamos essa pesquisa há mais de sete anos, e na época esse vetor viral era o melhor que tínhamos. Hoje já existem vetores melhores. Em vez de injetar o vírus no cérebro do paciente, quem sabe a gente poderia fazer isso pelo sangue, o que seria menos invasivo e o vírus chegaria ao cérebro pela barreira hematoencefálica. Mas, antes mesmo de pensar em ensaios com pessoas, precisaríamos testar em modelos animais mais próximos ao humano, como outros primatas, para entender melhor a segurança. Seria um pulo grande partir dos efeitos observados em cérebros de camundongos direto para pesquisas em seres humanos”, esclarece o pesquisador. 

Mesmo que ainda muito incipiente para ser considerada uma futura terapia, a nova descoberta é, no mínimo, otimista para as pessoas diagnosticadas, seus familiares e cuidadores que convivem com a DA, principalmente quando há mais de 100 anos permanece a carência de medicamentos eficientes e com poucos riscos adversos aos pacientes.

 

Escrito por Maria Eduarda Ledo de Abreu

03.01.2023

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