Pesquisador do IDOR participa de estudo que destrincha nosso jeitinho e o define em 2 tipos
Há quem se orgulhe, há quem não, mas é difícil negar algo tão característico ao brasileiro. O famoso jeitinho é um termo complexo sem tradução direta, que na nossa cultura se expressa cotidianamente de forma afetuosa, sedutora, ou até mesmo controversa quando aplicada ao oportunismo e desacato de regras. Não por acaso, essa peça ambígua do imaginário nacional já inspirou estudos de diversos campos do conhecimento, sendo analisada pelas áreas de Letras, Antropologia, Psicologia e até mesmo Administração. O fascínio pelo nosso jeitinho foi inclusive tema de um dos pesquisadores do Instituto D’Or, em um artigo recentemente publicado na Revista Plos One, que também envolveu estudiosos da UnB, Victoria University of Wellington e Universidade Salgado de Oliveira.
Ronald Fischer, cientista comportamental e pesquisador do IDOR, defende que o estudo traz uma escolha diferenciada em sua metodologia. Para ele, as pesquisas sobre esse fenômeno cultural brasileiro costumam se polarizar ou em estudos antropológicos, limitados ao recorte local do grupo estudado, ou em teorias universais, que muitas vezes aplicam de forma rígida conceitos desencaixados da realidade cultural que analisam. O pesquisador acredita que é importante uma visão histórica e econômica particular à sociedade que se estuda, porém, também reconhece que existem comportamentos similares em outros países, e que muitas das teorias de personalidade conseguem caracterizar, nessas outras culturas, aspectos morais e valores parecidos com o jeitinho no Brasil.
O artigo aborda a ideia de uma plasticidade comportamental, isto é, defende a existência de algumas disposições de personalidade que estarão presentes em todas as culturas, mas que irão se moldar de acordo com o contexto de cada indivíduo, considerando as questões socioculturais que permeiam o comportamento das pessoas. “Queremos criar um diálogo entre abordagens universais da psicologia e as abordagens mais relativistas e antropológicas”, afirma Fischer, argumentando que esse tipo de estudo requer um trabalho interdisciplinar, que inclui psicologia, economia comportamental, antropologia e até mesmo partes da biologia.
O que foi descoberto
Se tem ciência no jeitinho, não significa que tem jeitinho na ciência. O estudo foi fruto de várias etapas de coleta de dados, que inicialmente tiveram uma abordagem etnográfica e qualitativa, entrevistando grupos focais e pedindo para que as pessoas escrevessem comportamentos que caracterizavam o jeitinho para cada participante. Também foram realizados questionários online, que contaram com respostas de centenas de pessoas de todo o país, de diferentes gêneros e idades.
Do primeiro grande número de informações, os pesquisadores conseguiram selecionar cerca de 80 comportamentos comuns ao jeitinho brasileiro, que então foram reduzidos para aproximadamente 31 frases que identificavam quando e como o jeitinho era praticado. Com essa etapa, os pesquisadores identificaram 2 dimensões opostas presentes nessa contextualização. A primeira se refere a um jeitinho simpático, um comportamento amigável e cordial, já o segundo representa o jeitinho malandro, que é mais pejorativo e envolve a violação de normas sociais.
O jeitinho Simpático traz para si referências de cooperação, lealdade, respeito e polidez. Esse jeitinho é usado como uma forma criativa de solucionar problemas pessoais e de socialização. Mas os participantes também caracterizaram um outro lado do jeitinho, uma face muitas vezes associada à malandragem. Esse segundo aspecto foi mais relacionado ao egoísmo, enganação e até mesmo à corrupção. De acordo com a pesquisa, esse tipo de jeitinho é um meio igualmente criativo de solução de problemas, porém, é geralmente usado em benefício próprio e sob ruptura de regras sociais.
Vendo de forma mais abrangente, são duas faces da mesma moeda. E a maior descoberta, na realidade, é que nosso jeitinho representa uma marca distintiva em nosso comportamento, que é caracterizado por um raciocínio criativo diante de situações cotidianas e adversas. A simpatia ou a malandragem, nada mais são, do que uma verdadeira estratégia cultural para a solução de nossos impasses e superação de obstáculos sociais.
Por todo lugar
Como o nome sugere, Fischer não é brasileiro, mas vive em contato com o Brasil há muito tempo, e admite que o interesse pelo tema também possui um apelo pessoal. O pesquisador é fã do samba e da capoeira e, para ele, o jeitinho é característica intrínseca a manifestações culturais como estas. Mas nossas representações de simpatia e malandragem não param nas expressões corporais e ritmos brasileiros: nossa literatura também está repleta de personagens carismáticos e picarescos.
Ainda no século XIX, a figura do malandro carioca foi personificada em Leonardo, o herói deficiente em caráter, que protagonizou Memórias de um Sargento de Milícias, romance de folhetim escrito por Manuel Antônio de Almeida. O modernista Mario de Andrade também trouxe sua interpretação da brasilidade em Macunaíma, personagem que incorporou a miscigenação do índio, do negro e do europeu em um protagonista cômico, preguiçoso e egoísta. No Nordeste, o malandro vira o “desenrolado” e o jeitinho é incorporado a questões sociais, servindo como uma forma de sobrevivência para os Capitães da Areia, meninos de rua de Jorge Amado, e para o astuto João Grilo, pobre homem do sertão paraibano, cuja criatividade foi imortalizada no Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna.
Essa lista poderia ser ainda mais extensa se analisarmos nosso cinema e novelas, com personagens defeituosos e polêmicos que costumam receber, quando carismáticos o suficiente, um desfecho impune ou até mesmo feliz na conclusão das narrativas. Mas se é bom ou ruim essa afeição pela prática do jeitinho brasileiro, Fischer acredita que não importa. Para ele, devíamos tirar um pouco o foco da questão moral que envolve esse fenômeno, porque perdemos de fazer uma análise mais profunda sobre nossa origem e identidade. “O jeitinho brasileiro é, antes de tudo, uma forma de resolver problemas. É um conceito bem controverso aqui no Brasil, tem gente que se orgulha, acha uma manifestação cultural importante, e tem gente que detesta, associa à corrupção. Mas o jeitinho é uma ferramenta útil no contexto do país, que é hierárquico e burocrático. Na pesquisa, estamos buscando fazer um diálogo um pouco menos emocional e falar um pouco mais sobre por que a gente se comporta assim”, adiciona o pesquisador. Para ele, o jeitinho é uma ótima oportunidade de entender mais nosso contexto social e econômico, mas para isso é preciso estimular uma perspectiva mais vasta sobre assunto.
Escrito por Maria Eduarda Ledo de Abreu.