Resultados publicados na The Lancet Regional Health – Americas auxiliam na compreensão do perfil de neuroinvasão do Sars-CoV-2 e contribui para o conhecimento do desenvolvimento fatal da Covid-19 em crianças
Após 1 ano e meio de pandemia, as possíveis complicações sistêmicas e neurológicas que podem acometer adultos com Covid-19 já são bem conhecidas. A forma assintomática da doença é mais comum entre crianças e adolescentes, que têm melhor prognóstico quando contaminados, mas não estão imunes. Esta parcela da população pode transmitir e adoecer, muitas vezes desenvolvendo casos graves – como já reportado em estudo do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR), que chamou a atenção para o desenvolvimento da Síndrome Inflamatória Multissistêmica (MIS-C) em decorrência da Covid-19 – e até morrer. Quase metade dos 1.207 brasileiros mortos menores de 18 anos em 2020 eram crianças com menos de 2 anos de idade, segundo uma publicação recente de pesquisadores da Fiocruz. Durante o ano de 2021, a disseminação da variante Delta gerou preocupação pela sua maior transmissibilidade e maior capacidade de acometer crianças, que ainda seguem sem imunização.
De olho neste cenário, ganha importância os achados de pesquisadores do IDOR, com colaboração de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer (IECPN) que descreveram, com dados obtidos por uma autópsia completa, um caso de complicação por neuroinvasão do Sars-Cov-2 em uma criança de 14 meses de vida que contraiu a doença e morreu. O estudo “SARS-CoV-2 infection of the central nervous system in a 14-month-old child: A case report of a complete autopsy”, publicado na The Lancet Regional Health – Americas, traz informações relevantes para a compreensão do perfil de neuroinvasão do Sars-CoV-2, corroborando evidências de trabalhos científicos anteriores a respeito da capacidade do vírus de invadir e infectar células do SNC, e contribui para o conhecimento acerca do desenvolvimento fatal da Covid-19 em crianças. O estudo integra a plataforma de pesquisas Ciência IDOR contra a COVID, formada por dez outras frentes, todas relacionadas ao novo coronavírus.
“Acredito que a parte mais interessante seja, de fato, a sugestão da neuroinvasão pela via hematogênica no plexo coróide. A hipótese mais aventada (e inicial) é via mucosa olfativa-nervo olfatório. Esta possibilidade via plexo coróide pode levantar novas discussões sobre como tentar evitar que o vírus consiga romper esta defesa do SNC e acabar invadindo o cérebro pelo sistema hipervascularizado do plexo coróide. Além disto, a importância está em chamar a atenção para o fato de mais uma criança vítima fatal da COVID-19 e as complicações neurológicas da infecção”, destaca Ismael Gomes, primeiro autor do estudo.
O paciente, que tinha distúrbio convulsivo crônico, morreu de insuficiência respiratória, causada por complicações da Covid-19 como microtromboses no pulmão, tireóide e miocárdio; congestão pulmonar, edema intersticial, lesão bronquiolar, colapso dos espaços alveolares, atrofia cortical e perda neuronal grave. Cortes histológicos de múltiplos órgãos foram marcados e a presença de SARS-CoV-2 foi investigada por imunocoloração com anticorpo anti-proteína spike e por RT-qPCR.
O método identificou a infecção de Sars-CoV-2 no Sistema Nervoso Central em regiões do córtex cerebral, ventrículo lateral, cerebelo, gânglios da base, e, principalmente, plexo coróide, com intensa marcação de Sars-CoV-2 observada no endotélio desta estrutura, localizada dentro dos ventrículos e que produz o líquido cefalorraquidiano (LCR) com papel de nutrir e proteger o cérebro. Os pesquisadores destacam que a intensa presença do vírus no plexo coróide sugere uma vasta ruptura da barreira sangue-líquido cefalorraquidiano no momento da neuroinvasão, indicando que esta ruptura pode ser a porta de entrada do Sars-CoV-2 no SNC.
“A identificação de uma encefalopatia crônica com atrofia cortical e grave perda neuronal na autópsia, indica que a criança tinha uma comorbidade e pode justificar a evolução desfavorável nessa faixa etária. Não se descarta a possibilidade que estas alterações observadas no cérebro tenham sido agravadas pela Covid-19, seja pela insuficiência respiratória ou pela neuroinvasão do Sars-Cov-2, explica Leila Chimelli, do IECPN.
Apesar da doença pré-existente do paciente, os pesquisadores destacam que os achados deste estudo, com a autópsia completa e a caracterização da infecção por Sars-CoV-2 no SNC, adicionam dados relevantes sobre as manifestações sistêmicas e neurológicas da Covid-19. No entanto, ressaltam que mais estudos são necessários para esclarecer o papel da infecção do plexo coróide na agressão ao SNC e, também a necessidade de se continuar investigando casos graves e fatais de COVID-19 em crianças para um melhor entendimento das manifestações da doença nesta população e para se chegar a estratégias terapêuticas.
“Não se consegue responder até o momento, ainda mais em se tratando de crianças, quais delas vão desenvolver uma forma mais grave da Covid-19 e o porquê. É fato que doenças pré-existentes, comorbidades e alguns outros fatores estão diretamente relacionados com uma pior evolução, mas acaba sendo uma resposta muito individual. A questão da doença anterior da criança analisada neste estudo pode ter contribuído sim, mas já há relatos na literatura científica, por exemplo, que demonstraram complicações severas, e até casos fatais, de crianças previamente saudáveis”, conclui Ismael.
Escrito por Mayara Benatti.