Estudo com participação do IDOR descobriu ações positivas da lipoxina A4 nas funções cerebrais cognitivas e no sistema endocanabinoide
Os pesquisadores do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR), acabam de publicar na revista científica Translational Psychiatry um estudo que buscou elucidar os mecanismos envolvidos nos déficits cognitivos do envelhecimento humano, considerando a ação de moléculas que podem combater processos inflamatórios em doenças neurodegenerativas como o Alzheimer, e potencializar o sistema endocanabinoide. Essa substância, conhecida como lipoxina A4, vem sendo estudada pelos pesquisadores há anos e essa é a primeira aplicação contra doenças neurodegenerativas ligadas ao envelhecimento, com potenciais desdobramentos no campo diagnóstico. Este estudo foi realizado em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) e The Broad Institute of MIT and Harvard.
A inflamação faz parte da defesa do organismo, mas sua ação desregulada tem um papel importante em doenças crônicas e neurodegenerativas, incluindo o Alzheimer. O controle da resposta inflamatória ocorre, entre outros fatores, por mediadores lipídicos como as lipoxinas, que atuam na resolução natural da inflamação. Por exemplo, quando um machucado na pele se “cura sozinho”, estamos observando estas moléculas em ação. Essa proteção ativa também acontece no sistema nervoso central, mas é mais difícil de visualizar. A hipótese central do trabalho publicado é que a perda deste controle poderia levar a problemas inflamatórios crônicos e, em última estância, à neurodegeneração.
O interesse principal do estudo foi entender a dinâmica natural de redução dos níveis de lipoxina que ocorrem no organismo ao longo do envelhecimento, um fenômeno que poderia estar relacionado à vulnerabilidade do organismo às doenças neurodegenerativas.
Tendo em mente que os efeitos da lipoxina A4 (LXA4) no cérebro não eram muito esclarecidos, o estudo avaliou os possíveis efeitos desse bioativo no ambiente cerebral e sua atividade, correlacionando-o principalmente ao avanço da idade nos organismos. Os cientistas avaliaram a presença da molécula no cérebro de camundongos, em células humanas neurais desenvolvidas em laboratório e no líquido cefalorraquidiano (líquor) – fluido presente em todo o sistema nervoso – extraído de pacientes idosos com demência e outras doenças neurodegenerativas. Este foi o primeiro estudo a demonstrar a origem da LXA4 no sistema nervoso central, apontando sua presença em neurônios e micróglia (células inflamatórias) de humanos e camundongos. Também foram usados para confirmar essa informação organoides cerebrais desenvolvidos em laboratório, que possuem um perfil bioquímico e organização estrutural semelhantes ao cérebro humano embrionário.
Além disso, a imunofluorescência (outra técnica que permite avaliar a distribuição do antígeno em uma amostra) demonstrou a presença de 5-lipoxigenase (5-LOX), enzima responsável pela produção de LXA4 nos organoides cerebrais (Imagem). Esse conjunto de dados levantam a possibilidade de que os neurônios e a micróglia estejam envolvidos no fornecimento de LXA4 ao cérebro humano.
Até então havia uma controvérsia na literatura científica, com outro grupo de pesquisa associando a presença da 5-LOX à disfunção sináptica observada em modelos animais da doença de Alzheimer. O atual estudo propõe o contrário, e esclarece que a lipoxina produzida pela 5-LOX diretamente no cérebro é um aspecto que contribui com a neuroproteção.
Nas pesquisas com camundongos, o enfoque foi entender no modelo animal a relação da LXA4 com o processo de envelhecimento, com a hipótese de que a redução dos níveis desta substância enfraqueceria as defesas do organismo, tornando o cérebro vulnerável à neurodegeneração. Foi observado que os níveis de LXA4 no plasma sanguíneo e no cérebro se mostraram reduzidos em camundongos de 12 meses (“idosos”) quando comparados aos de 3 meses (“adultos jovens”). Nos camundongos mais velhos, também foi demonstrada redução na capacidade de aprendizado e perda de memória de curto prazo, indicando que níveis reduzidos de LXA4 são acompanhados de déficits cognitivos nos animais com idade mais avançada.
“Este estudo faz uma contribuição importante em estabelecer a presença local da lipoxina no sistema nervoso central, assim como o declínio dos seus níveis ao longo do envelhecimento, algo que vinha há muito sendo debatido pela comunidade científica. Junto com o artigo anterior do nosso grupo, conseguimos definir que esta substância é um fator importantíssimo de proteção anti-inflamatória no cérebro humano, provavelmente evitando a ocorrência de neurodegeneração nos indivíduos que envelhecem de maneira saudável”, menciona Dr. Fabrício Pamplona, pesquisador do IDOR, da UNILA e autor principal do artigo.
O estudo também avaliou se injetar LXA4 poderia ter um efeito protetor contra as alterações de memória induzida por uma lesão inflamatória nos camundongos. Foi observado que após setes dias da injeção com LXA4 houve uma estabilização cognitiva e redução de moléculas inflamatórias no plasma sanguíneo dos roedores, o que levou os pesquisadores a avaliar a relevância dessa lipoxina em humanos com diferentes diagnósticos de comprometimento neurológico decorrente da demência e/ou neurodegeneração.
Neste experimento, observou-se que a LXA4 diminui proporcionalmente no líquor de acordo com o envelhecimento e com a severidade de comprometimento cognitivo dos pacientes. Ou seja, quanto mais idoso e com maior comprometimento cognitivo, menor o nível de LXA4 no líquor. A diminuição de LXA4 no líquido cefalorraquidiano também se mostrou relacionada ao acúmulo da proteína beta-amiloide (Aβ42) no cérebro, um dos marcadores neurotóxicos da Doença de Alzheimer.
Uma novidade interessante deste estudo é que a LXA4 possui um mecanismo inovador, envolvendo uma potencialização do sistema endocanabinoide. Este sistema promove o equilíbrio do organismo (conhecido como homeostase), fazendo um controle fino da neurotransmissão, com impacto em uma série de processos fisiológicos que vão desde o controle do apetite, liberação de hormônios, cognição, dor e inflamação, entre outros. De acordo com a linha de pesquisa do grupo, a LXA4 promove uma ação neuroprotetora via interação direta com receptores canabinoides do tipo CB1, resultando em uma melhor transmissão do endocanabinoide anandamida.
“Os receptores CB1 são a principal chave do sistema endocanabinoide, que promove uma regulação fina dos sistemas de neurotransmissão cerebral. Sabendo que a lipoxina promove uma ativação do sistema endocanabinoide, como já caracterizamos em outro estudo, a informação de que ela é produzida e liberada por células imunológicas no cérebro (a micróglia), nos permite situar sua ação em um cenário de interação entre sistema nervoso central e sistema imunológico. Essa regulação é mais um papel chave do sistema endocanabinoide, mostrando que o equilíbrio inflamatório é essencial para a saúde do nosso cérebro, particularmente durante o envelhecimento”, ressalta Pamplona.
Sendo assim, a LXA4 seria uma substância de ocorrência natural com ação dual, anti-inflamatória e protetora, cujo declínio ao longo do envelhecimento provocaria uma “vulnerabilidade” do cérebro à neurodegeneração. Os achados apontam que a prevenção frente à diminuição de LXA4 pode preservar a saúde do ambiente cerebral e a cognição, além de ser uma descoberta importante para o desenvolvimento de futuras terapias voltadas para doenças neurodegenerativas. Os autores informam que são necessários ainda mais estudos para esclarecer os mecanismos de ativação da LXA4 e para avaliar como o estímulo à produção dessa molécula poderia ser eficaz para desacelerar o declínio cognitivo na população da terceira idade.
Escrito por Dr. Fabricio Pamplona, Manuelly Gomes, Maria Eduarda Ledo de Abreu