IDOR participa de estudo nacional que destrincha efeitos do zika nos astrócitos, uma das células mais prejudicadas pelo vírus.
Anteriores estudos relacionados à ação do zika no cérebro já haviam apontado a predileção do vírus por uma determinada célula neural: o astrócito. Porém, poucas pesquisas se propuseram a identificar os efeitos causados pela infecção no funcionamento dessas células, assim como sua relação com as alterações de desenvolvimento, entre elas malformações cerebrais e microcefalia. Recém-publicado na revista Scientific Reports, um novo artigo buscou destrinchar as reações do vírus sobre astrócitos criados em laboratório, comparando-os a essas mesmas células presentes no tecido cerebral de animais e fetos infectados com o zika.
Marcados por sua estrutura de pontas ramificadas e vasta abundância no tecido cerebral humano, os astrócitos recebem esse nome por remeterem a estrelas enredando nosso órgão soberano. Essa constelação neural possui um papel fundamental nas funções cognitivas, já que fornece suporte metabólico para os nossos neurônios, participa na formação de sinapses e compõe a barreira hematoencefálica, estrutura que seleciona a entrada de substâncias no cérebro, protegendo-o de toxinas prejudiciais ao seu funcionamento. O estudo realizado pelo Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR), em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e outras instituições brasileiras, descobriu que parte das complicações neurais causadas pelo zika pode estar relacionada ao seu dano sobre os astrócitos, o que também contribuiria para o surgimento de malformações cerebrais.
O autor correspondente do artigo foi o neurocientista Stevens Rehen, pesquisador da UFRJ e IDOR envolvido em diversos outros estudos relacionados ao zika, incluindo a primeira publicação a analisar os efeitos do vírus em minicérebros humanos. No artigo mais recente, Rehen e sua equipe destrincharam as alterações que a infecção viral causa em células neurais específicas, assim como suas consequências para o desenvolvimento cerebral. “A literatura científica já havia identificado o ataque do zika aos astrócitos, mas até então nenhum estudo havia se debruçado para entender como ele afeta seu funcionamento” afirma Karina Karmirian, integrante da equipe de Rehen e uma das primeiras autoras do estudo. Entre os prejuízos que o vírus causa a essas células, estão a sobrecarga de suas mitocôndrias, quebras no DNA e estresse oxidativo, sendo este último um aspecto comum ao envelhecimento precoce, câncer e doenças neurodegenerativas.
Para alcançar o escopo da pesquisa, os cientistas criaram separadamente em laboratório 3 tipos celulares presentes no cérebro fetal humano: astrócitos, neurônios e células-tronco neurais. Ao serem infectados com o vírus zika, os danos mais severos foram comprovados nos astrócitos, cujas organelas responsáveis pela respiração celular — as mitocôndrias — passaram a produzir radicais livres em excesso, gerando estresse oxidativo e alterações em sua morfologia. Além da alta porcentagem de morte celular, muitos astrócitos sobreviventes passaram a apresentar núcleos celulares reduzidos e irregulares.
Helena Borges, professora da UFRJ e uma das pesquisadoras do estudo, detalha porque alguns danos do vírus zika podem ser permanentes em astrócitos. ” Para se reparar quebras de dupla fita de DNA, há dois principais tipos de reparo de DNA: o que utiliza uma cópia íntegra de DNA como molde — recombinação homóloga — e um mecanismo mais rápido de reparo, mas potencialmente sujeito a gerar mutações, que dispensa a presença de uma cópia íntegra de DNA: a recombinação não-homóloga. As células proliferantes, como as células-tronco neurais, podem usar os dois mecanismos de reparo. Entretanto, células diferenciadas como astrócitos, que já não mais proliferam tanto como células-tronco neurais e progenitoras neurais, possuem uma possibilidade de recombinação homóloga reduzida, aumentando a chance de aparecerem mutações permanentes nos astrócitos”, explica.
Respectivamente, astrócitos, células progenitoras neurais e neurônios infectados por zika (em verde). Nas imagens, os núcleos celulares estão destacados em azul. Nota-se que os astrócitos possuem todas as suas células infectadas pelo vírus da zika (imagem 1), enquanto as progenitoras possuem apenas algumas células danificadas (imagem 2) e os neurônios sequer demonstram infecções na figura (imagem 3).
A pesquisa também se baseou na análise de tecidos cerebrais de fetos que vieram a óbito devido à infecção. Os cientistas identificaram maiores indícios de inflamação nos astrócitos dos fetos, confirmando a relevância dessas células no padrão de ataque do vírus. O mesmo perfil inflamatório foi identificado nos estudos com animais: camundongos infectados com o vírus zika também revelaram maior vulnerabilidade dos astrócitos, em comparação com os neurônios. As células microgliais – que, como os astrócitos, são responsáveis pelo suporte aos neurônios – também foram notavelmente infectadas durante o processo. “Estas células possuem função imunológica no cérebro e alcançaram um nível de inflamação próximo ao dos astrócitos durante os experimentos. Os neurônios em si possuem baixa infecção, mas eles dependem da comunicação com os astrócitos e microglia para um desempenho saudável. Isso nos leva a supor a maneira pela qual os neurônios também podem ser afetados a longo prazo, devido à ação do zika nessas células essenciais ao funcionamento neuronal”, informa Karmirian.
As descobertas da pesquisa brasileira levam os cientistas a concluir que, devido ao papel crucial dos astrócitos na formação e funcionamento do cérebro, seu desequilíbrio durante o desenvolvimento neural deve colaborar com graves implicações à saúde ao longo de toda a vida. Não apenas em problemas relacionados a malformações cerebrais, como a microcefalia, mas possivelmente em distúrbios neurológicos manifestados na idade adulta daqueles infectados ainda no útero, independente de terem sido acometidos por microcefalia ou outras malformações aparentes. Os pesquisadores afirmam que, devido à incipiência de estudos de longo prazo relacionados ao zika, novas investigações serão necessárias para determinar as consequências da infecção em crianças e adultos, à medida que problemas neurológicos podem surgir mais tardiamente devido à ação do vírus sobre astrócitos ainda jovens.
Os estudo, publicado nesta segunda-feira (27/01/2020), já foi divulgado em veículos como Estadão, Globo News e Band News.
Escrito por Maria Eduarda Ledo de Abreu.