Psicodélicos são promissores para o tratamento de transtornos mentais graves, e células-tronco desenvolvidas em laboratório podem catapultar as pesquisas em desenvolvimento
Nos últimos anos, os psicodélicos têm atraído crescente interesse como potenciais tratamentos para uma variedade de transtornos mentais, desde a depressão até a dependência química. No entanto, muitos aspectos de seu mecanismo de ação e seus efeitos no cérebro humano ainda permanecem pouco compreendidos. Em uma revisão publicada recentemente no periódico iScience, do reconhecido grupo Cell Press, pesquisadores brasileiros do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) discutiram os métodos mais frequentemente empregados para estudar psicodélicos em nível celular, apontando o uso de células-tronco humanas como poderosas ferramentas translacionais para a pesquisa com essas substâncias.
Psicodélicos, também conhecidos como enteógenos serotoninérgicos, são compostos que afetam a percepção, o humor, a consciência e a cognição. Durante anos, estigmas sociais e obstáculos políticos prejudicaram o progresso científico no campo, mas no final dos anos 1990, o interesse em seu potencial terapêutico ressurgiu, e desde então os psicodélicos têm sido estudados como tratamentos promissores para diversos problemas neuropsicológicos, como o transtorno de humor e a dependência química, além de ser um recurso estimulante da plasticidade cerebral, que é a habilidade do órgão em criar novas conexões e adaptar-se a situações adversas.
Apesar desse renascimento científico há mais de duas décadas, o estudo dos psicodélicos ainda possui um longo caminho pela frente, pois o potencial e os mecanismos de ação dessas substâncias ainda são pouco compreendidos. Além disso, a maioria das pesquisas sobre o tema está em fase laboratorial, envolvendo modelos animais e celulares que não refletem inteiramente seus efeitos em seres humanos.
Levando esse cenário em consideração, os cientistas da revisão propõem o uso de células-tronco como um método complementar às pesquisas com psicodélicos. Eles enfatizam a aplicação de células-tronco humanas de pluripotência induzida (hiPSCs, a sigla em inglês), reprogramadas a partir de células da pele de doadores adultos e transformadas em laboratório para que retornem ao seu potencial embrionário, podendo a partir de então se transformar em células de qualquer outro tecido humano.
Essas células-tronco possuem o material genético do indivíduo doador, o que é particularmente interessante no estudo de doenças hereditárias e novas terapias. E os autores da revisão apontam que esse diferencial pode ser particularmente interessante em pesquisas com psicodélicos endereçados ao tratamento da depressão e abuso de drogas.
Pesquisas anteriores demonstraram que os psicodélicos exercem seus efeitos principalmente por meio da ativação dos receptores de serotonina 5-HT2A. Esses receptores estão envolvidos na regulação do humor, da percepção e da cognição. Estudos recentes têm demonstrado que a ativação dos receptores 5-HT2A induz mudanças significativas na plasticidade cerebral, incluindo a formação de novas sinapses e potencializando a comunicação neuronal, o que é o oposto que acontece em quadros psiquiátricos como a depressão e outros transtornos de humor.
Estudos de psicodélicos em animais, predominantemente roedores, são responsáveis por muitas das informações que temos sobre essas substâncias atualmente. Contudo, as células destes animais não são iguais às células humanas, reconhecendo-se inclusive diferenças entre as sequências de aminoácidos nos receptores 5-HT2AR de humanos e de roedores.
Outra abordagem comum no estudo dos enteógenos serotoninérgicos é o uso de linhagens celulares imortalizadas, células que se reproduzem indefinidamente, o que dificulta o entendimento da especificidade dos efeitos dos psicodélicos no sistema nervoso central. Essas linhagens celulares imortalizadas são muitas vezes tumorais e falham em capturar a fisiologia humana, pois possuem mutações e alterações em seu DNA que limitam sua capacidade de simular a biologia celular do cérebro e outros tecidos humanos saudáveis.
As hiPSCs podem ser cultivadas como agregados celulares para o desenvolvimento de tecidos humanos com características semelhantes aos tecidos e órgãos humanos naturais. No IDOR, diversas outras pesquisas são desenvolvidas a partir de neuroesferas e organoides cerebrais originados dessas células, estruturas que combinam neurônios e células gliais em um ambiente de comunicação celular tridimensional. Esses organoides cerebrais fornecem ainda uma alternativa viável para testar hipóteses em que os modelos animais são limitados, dentro do contexto de pesquisa pré-clínica.
Um dos autores da revisão, Dr. Stevens Rehen, cientista do IDOR e professor licenciado da UFRJ, comenta que “a adoção de células-tronco pluripotentes induzidas humanas e seus derivados organoides como ferramentas translacionais em estudos pré-clínicos têm acelerado as descobertas científicas em diversas áreas da medicina, e não será diferente na ciência psicodélica”.
Os autores ressaltam que há ainda desafios para a aplicação mais ampla de células-tronco reprogramadas e organoides em pesquisas com psicodélicos, incluindo custos associados e protocolos de cultivo celular mais complexos e sensíveis, o que requer muito treinamento e atenção para evitar resultados imprecisos e garantir reprodutibilidade das pesquisas.
Enquanto novos métodos estão sendo desenvolvidos para otimizar as pesquisas com essas células-tronco e organoides, há a possibilidade de estabelecer biobancos com células-tronco de pacientes portadores de doenças neurodegenerativas, e doadores de populações étnicas pouco representadas em estudos clínicos com psicodélicos.
Os pesquisadores ratificam que a aplicação das hiPSCs irá complementar os resultados obtidos com outros métodos utilizados em pesquisas com psicodélicos, acelerando o processo translacional de transformar descobertas de laboratório em possibilidades terapêuticas seguras para seres humanos.
Escrito por Maria Eduarda Ledo de Abreu.